João do Bairro.

Tarcisio Praciano Pereira

Os carros passam velozes, certamente muito acima da velocidade
permitida de 50 km/h. É uma graça esta história da
velocidade máxima. Se eles corressem neste limite certamente João
morreria mais devagar ao se arriscar atravessando a avenida. Possivelmente
algum guiador até se desse conta de que estava matando alguém,
ou apenas fazendo pasta de alguma coisa na pista. Claro, poderia ser apenas
um cachorro. Quem iria parar e verificar?

João está a quase quinze minutos parado ali naquele buraco ilegal do separador de pistas. Começa pensar que teria valido
a pena andar um quilometro para pegar a passarela. As passarelas foram
feitas e planejadas por gente que vive sentada nos carros. A distância
entre elas é de alguns quilômetros. Claro, elas ficam exatamente
no ponto de maior fluxo de pedestres… dizem eles.

João está impaciente e impotente olhando o rio de carros que passam. Fixou os olhos numa loira que lhe chamou a atenção e a acompanhou com os olhos enquanto pode.

Bonita a gatinha, pensou, chegou a imaginar o odor suave do perfume que ela deveria usar. Foi com certo esforço mental, o ambiente ali é fétido, com os gases ácidos dos carros que passam. Sentiu algum
remorso pensando que acabava de trair, em pensamento, a sua querida Joana.
Claro que ele sabia bem o que era ficar cheiroso. A sua Joana era cheirosa,
tomava banho todo dia na casa da patroa antes de sair do trabalho. As crianças também se banhavam na creche, o que não podiam era trocar de roupa. Ele só
tomava banho nos fins de semana, na casa da sogra, onde tinha um
chuveiro elétrico. Fora isto tinha a chuva.

É o diabo, a loura bonita, andando no carro debruçada na porta “saboreando” um cigarro. Faz uma figura imponente, a perua. Ele a vira, e ela não o percebera, poderia tê-lo
matado se ele tivesse se atrevido a passar para o outro lado naquela hora.
Matava e continuava tranquila pensando que teria morto um cão.

De repente um sacana que passa de carro olha para ele e ri. O safado ainda se divertiu com a dificuldade do João. Que lhe poderia ter passado
pela cabeça? não era possível que se tivesse posto a rir somente
porque o vira ali naquela entaladela? Impossível mesmo não seria. Ele
conhecia uns tipos lá no trabalho que eram capazes disto mesmo, de se
rir das dificuldades dos outros, o filho do patrão, por exemplo, um pinta
fino e safado. Mas João do Bairro não tinha maldade
na alma e chegou até a acompanhar o riso do maldito chofer. Se colocou
no lugar do chofer e pensou como devia ser ridícula sua posição.
Sua cabeça se encontrava num vai e vem desgraçado. Botava os olhos
num carro ainda distante, e a cabeça acompanhava o movimento dos olhos
e o corpo também para equilibrar a tensão muscular. O movimento do
carro o embalava e assim ele ficava inteiro neste vaivém. Tudo que devia
fazer era olhar os carros e calcular se a distância entre eles
permitiria a passagem, mas os carros eram bonitos, e as pessoas dentro deles
alegres e satisfeitas, e ele se perdia do seu objetivo e ficava entretido
na contemplação da opulência dos outros que eram ricos, milionários perto dele. Pobreza é uma merda, pensava, enquanto voltava a procurar os carros mais distantes para um novo cálculo
de distância e oportunidade.

Esta gente que anda de carro não sofre nada e ainda faz sofrer o diabo a quem anda a pé. Para sair de casa, apertam o botão do controle remoto e o portão da garagem se abre ou fecha. Não interessa se
está chovendo, eles saem de casa na maior tranquilidade. E ainda
saem apressados, em cima da hora. Comeram tranquilos, mordendo com gosto o
pão quentinho com manteiga deliciosamente regado por um café com
leite preparado sob medida. Dizem que tem gente que toma café com
leite adoçado a mel de abelha? pode? Acordam tranquilos, na hora certa, na medida do sono que tinham.

Para ele e Joana, acordar de manhã faz parte do pesadelo que os embala muitas vezes durante a noite. Felizmente as crianças já
se acostumaram com a ideia da merenda na creche e não perguntam
se tem café de manhã. Ele come no serviço, toma dois ou três
cafés furtivamente. Depois come o feijão frio da lata que funciona
como marmita. Joana trabalha como doméstica e almoça todos os
dias, depois que o pessoal da casa sai para trabalhar. Anda gordinha e
bonita a sua Joana, ele pensa, em compensação ao fato de ter olhado
com muita atenção para loura que se foi.

Já estava escurecendo nesta tarde de inverno, 18:30. Com sorte ele conseguia atravessar a avenida e chegar vivo do outro lado. Depois ainda
tinha mais um monte de ruas cheias de carros para atravessar, e essa droga de
chuva miúda caindo, deixando-o todo úmido e aumentando o frio. Chegaria em
casa como sempre depois das nove, porque iria a pé. Com o dinheiro do
ônibus comprara o leite: dois tiques transporte valiam uma passagem de
ônibus no mercado negro, e ele sempre vendia os seus para garantir
o leite do dia.
E o patrão ainda insistia na pergunta se ele os usava mesmo para pagar
ônibus, se não tinha uma bicicleta.

Quando chegava em casa Joana tinha acabado de chegar com os crianças que pegava na creche da prefeitura, depois do trabalho.
Era um copo de leite para
cada guri e sobrava meio copo para ele. Afinal ele não gostava mesmo muito
de leite. As vezes era Joana que tomava o meio copo de leite.

Afinal se arriscou correndo em diagonal, driblando as três fileiras de carros como sempre fazia. Na semana passada assistira um acidente. O cara
não morrera, pelo menos não ali na hora. Um dos carros lhe batera no
pé enquanto o coitado pulara para o outro para evitar de ser morto.
Amassara o carro e atrapalhara o trânsito, como numa musiquinha que
já escutara alguma vez na rádio. Neste dia do acidente,
João conseguiu
vencer esta etapa mais rápido. Quando havia acidente, os carros ficavam
entalados e o trânsito fluía mais lento. Se podia até passar com
tranquilidade que os caras ao volante deixavam numa boa. Parece até
que ficavam educados.

Terminou chegando em casa lá pelas nove e meia da noite, pontualmente, como sempre. Era um momento de alegria, se deitar com
filharada e fazê-los dormir. Geralmente também dormia, tinha o
corpo todo dolorido, como se tivesse feito uma grande ginástica.
Dormiam os três filhos e João, aconchegados como cães numa mesma cama.
As vezes Joana também se juntava aos quatro e então fazia um calor agradável
embaixo do cobertor velho, sujo, mas gostoso. E os moleques gostavam
de dormir assim, enquanto que João lhes contava a história do dia,
a cor dos carros que vira, o jeito das pessoas guiando e como conseguira
atravessar cada rua. Parece que todo dia era uma nova história, os
moleques chegavam a rir de alguma coisa, e
quando eles já estavam dormindo as vezes Joana perguntava tristonha
o que ela faria, se um dia ele não pudesse contar a história.

2 pensamentos sobre “João do Bairro.

  1. O homo non-sapiens conseguiu transformar a vida sobre a superfície da terra em algo mesmo muito ruim.

    E sabe o que é pior? Ainda vai continuar piorando!!

    O que, por um lado, me consola é que sou septuagenario e meu fim não demora. Por outro lado, o que me consome é que tive filhas e tenho netos.

    Uma merda, muita merda produzida por estes filhos de cu, cagados e não paridos.

    Pobres e podres seres desta espécie do homo non-sapiens…

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